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Entrevista
feita por Dalila Teles Veras
Numa tarde cálida de quase primavera, a última dos novecentos,
Amadasi serve café e seus gestos largos orquestram o silêncio
no ateliê do Riacho Grande, a Billings ao fundo. Meus olhos passeiam
pelos contornos fortes de suas esculturas - mudas mas poderosas expressões
- e podem ler ali uma possível resposta àqueles que preconizam
a morte da arte. Sua fala mansa é a antítese de sua mensagem.
A conversa risca a tarde como um buril a abrir veias e nervos na pedra.
Seguem alguns momentos dessa conversa, registros do pensamento de um talentoso
artista que não perdeu a capacidade de atear o fogo da indignação
nesta virada de era e derrocada de valores.
Dalila A sua arte traduz sua própria
concepção ideológica de mundo?
Amadasi Sim, em primeiro lugar, enquanto
cidadão, depois, enquanto conceito de cidadania, é preciso
ter uma postura e uma postura significa um conceito, uma idéia,
um sonho a ser realizado. Sem dúvida, a arte como instrumento do
homem pensante é portadora de uma ideologia. Eu me pergunto: as
artes plásticas como exercício visual ou como reflexão?
Arte para ver ou arte portadora de um conceito de vida? Arte para ver
ou arte para ver e pensar? Este foi sempre o divisor de águas entre
posturas, atitudes e pensamentos diferentes, quando não antagônicos.
Dalila Então você concorda
que a arte ainda tem uma função social?
Amadasi Sim, junto a outras ações
do homem, a arte tem a função de elevar o nível de
consciências e sensibilizar as pessoas. Não estaria modelando,
criando se não acreditasse no potencial de interferência
de meu trabalho, se não, aquilo que restaria, seria um simples
exercício do ofício, próprio para um jogo de um ego
vazio e inútil. Se arte é um produto do ser, da essência,
do existir, não há espaço para um brincar de faz
de conta, alimentado por mercados ou pessoas interessadas em fortalecer
seus próprios bolsos, ao preço neutralizador, pasteurizador
ou vulgarizador do drama da existência humana.
Dalila Está claro que você
não copia a realidade e suas mazelas sociais, mas a recria através
da arte. Além dessa vida que pulsa nas ruas, traduzida nas suas
esculturas, você tem também uma preocupação
estética?
Amadasi Sem dúvida. Estética
é transformar o sentido do que seja a beleza, dando um conteúdo
para ela, pois a beleza não é apenas um fenômeno efêmero
ou um mero jogo formal de cores, formas e composição, mas,
simplesmente, ela faz sentido em função de um projeto que
se chama ser humano e sua transformação. Trata-se da comunhão,
da simbiose, do que é escultura, do que é prática
e do que é ser humano. Esse casamento chama-se arte. As formas,
as maneiras do sentir e do expressar são infinitas e graças
a Deus que somos tão múltiplos, mas os conteúdos
continuam sendo constantes e permanentes.
Dalila Com tudo isso, você acredita
que a arte é um elemento que possa contribuir para mudar o curso
da história?
Amadasi Acredito, porque, certamente,
trata-se de um elemento perturbador. A arte deve ser verdadeiramente questionadora.
A arte nunca foi, para mim, embalo para corpos cansados ou crises matrimoniais,
sonho em ser um despertador dos sentidos, uma arte pensamento, uma rebeldia,
uma posição, uma não acomodação e uma
idéia. Qualquer gesto de resistência e ousadia. A escolha
entre ser um bobo da corte, entretenimento ou lazer das elites ou questioná-las
e participar. Existe uma enorme diferença em aparentar o que somos
ou expressar realmente o que somos. Resistir e acreditar que tudo pode
mudar. Sonhar é preciso.
Dalila O que você acha do conceitualismo
predominante na arte atual?
Amadasi Do conceitualismo ou da falta
de conceitos? Eu penso que é necessário vivenciar e repensar
os conteúdos vitais e constantes dos seres humanos. No caso das
artes plásticas, a partir de Leonardo da Vinci, há uma história
humanista, segue uma perspectiva humanista através da cultura.
Não pensar, não sentir, ou não entender o conceito
disso é não conceituar a arte, é perder o conteúdo
de vida. Uma arte sem conteúdo nem fundamento não vale a
pena ser vivida. Não tem função social ou sensível,
não é transformadora. É esse o vazio que enfrentam
os artistas neste momento e que reflete o vazio que vai na cabeça
das pessoas. Eu me pergunto como alguém pode fazer algo no qual
não acredita? Se a arte não serve, façamos algo mais
útil, outras atividades. Denise Stoklos diz: como as pessoas podem
estar satisfeitas com suas pequenas conquistas, com suas propriedades,
quando tudo está cada dia mais vazio?
Dalila Dentro dessa sua visão
e dessa sua postura, como é que você dialoga com a chamadas
vanguardas artísticas?
Amadasi Muito bem, com bastante humor
e um pouco de ironia. Eles me contam que, nesta temporada, a saia vem
mais longa e a cor do momento puxa para o floreado. Para mim, isso não
vai além de um jogo transitório, fácil, modismos
de efêmero consumo. Não vale a pena ser levado a sério
e discutido. A arte, ou tudo o que mereceria ser chamado assim, nunca
copiou de forma servil, aleatória e mecânica. Para quê?
Para sentir que somos parecidos, quando não idênticos a outras
realidades tão diferentes da nossa? Para que se travestir, se iludir
vestindo roupagens do que nunca chegamos a ser, ou será que não
queremos aceitar o que somos?
Pelo contrário, toda arte e cultura que teve um fundamento, surgiu
dos mais profundos sentimentos coletivos, históricos e condições
reais de um povo. Tem raízes dentro de si, tem um olho aberto para
fora e outro olho sensível para sua própria realidade, sua
singularidade.
É a capacidade que tem o homem para olhar dentro de si profundamente
- evitando seu próprio umbigo - e descobrir que somos diferentes
porque as condições são absolutamente diferentes,
somos parte real de um continente de desafios abertos e ainda problemáticos.
Quanto às chamadas vanguardas, elas vão cansar de trocar
de roupa - disfarces, cores, máscaras - apenas aparências,
para depois perceberem que estavam despidas.
Dalila Você acredita que haja,
no Brasil, discriminação estética?
Amadasi Quando Picasso criou “Guernica”
em Paris, acusando as atrocidades do fascismo espanhol, e o desrespeito
pelo direitos humanos, expressando a injustiça social e a intolerância
foi tachado de panfletário. Quando, em 1944, Picasso disse: agora
compreendi que devo combater não somente através de minha
arte mas através de todo meu ser, foi acusado de militante. O nosso
final de século está aí e continua sendo, mais do
que nunca, uma catarse, uma confrontação aberta entre um
humanismo profundo, histórico, aquele do Leonardo da Vinci, das
imagens críticas de Bruegel, dos mistérios de Hieronymus
Bosch, lutando contra todo o tipo de inquisições, torturas
ou inventos de massacrar gentes.
Dalila Como você avaliaria a passagem
de sua fase anterior, considerada pela crítica como surrealista
- a do sonho e da imaginação - para a atual fase, uma arte,
digamos, humanista, que olha o homem e as suas mazelas sociais?
Amadasi Avaliaria de um outro ponto de
vista. Eu trabalhei muito em cima do sonho, eu tenho uma vida de sonhar
muito, sempre trabalhei em função dos meus sonhos, e ainda
os registro pois é um material inesgotável e riquíssimo.
Quando se trabalha com uma realidade, ela é social, mas, muito
em especial no Brasil, ela é extremamente surrealista, supera a
fantasia. Não houve, na verdade, essa transição,
eu continuo vendo a realidade e registrando o sonho.
Dalila Fale um pouco de sua proposta
hoje, a de falar dos deserdados, os excluídos...
Amadasi Não posso deixar de registrar
em minha obra o que vejo a cada dia e o que vejo é um mundo onde
reina uma desigualdade atroz, um mundo onde uma infinidade de seres não
têm a mínima possibilidade de sair da alienação,
submetidos a uma crueldade inaudita, que gera uma cadeia de fracassos.
Minha proposta é trabalhar com os marginalizados como um retrato
vivo, criando uma galeria dos deserdados e oprimidos, expressando o universo
frívolo, estúpido, consumista e insensível desta
sociedade.
Num mundo do qual somos parte, de enormes massas humanas à beira
do desespero pela falta de possibilidades, de caminhos, que sentido teria
fechar os olhos e fingir que não vemos, que não sentimos?
O que seria da sensibilidade no dia em que tudo passasse a ser normal,
como a indiferença, a omissão, a postergação
de respostas concretas? Aí perguntamos e nos perguntamos: cadê
a liberdade, o direito de reagir dentro de uma cultura que transforma
o grito e a dor em banalidade?
Denunciar a impiedade de um mundo contemporâneo através de
uma arte que não, copia a realidade, mas a questiona e até
a retoma, partindo da força da indignação e do espirito
da dor, é a idéia principal do meu trabalho.
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