Ricardo Amadasi é um artista para quem a criação artística é um permanente
compromisso ético. Sua recusa a avalizar a vida como ela é (ainda que se mantenha sempre atento a ela) proporciona coesão à sua obra e coerência à sua atuação social como criador e curador do Museu de Arte Popular de Diadema.

A figura humana sempre esteve no centro das preocupações de sua obra. Em sua escultura, encontramos com freqüência figuras humanas isoladas, lutando em vão contra forças que as oprimem em escala desproporcional.
Na série de gravuras iniciada em 2011, o ser humano continua a ser o tema central, mas agora ele assume nova forma e nova condição. Essas novas forma e condição projetam o desejo utópico de Ricardo – a felicidade equitativa e compartilhada – para outro tempo e outro lugar.

Essas gravuras exploram um mundo que, diferente deste em que vivemos agora, foi feito para a escala humana. Não nos deparamos com as estruturas opressoras, a tragédia banalizada no cotidiano ou a aspiração metafísica, tão presentes nas esculturas de Ricardo nos últimos 20 anos. O mundo dessas gravuras é um espaço e um tempo quase indeterminados em que cada pequeno gesto tensiona a vida coletiva para, logo em seguida, retomar o repouso e a consonância estampada nos semblantes serenos de suas figuras humanas.

Esses seres humanos são figuras emblemáticas, não seres reais. Estão sempre em grupos numerosos e parecem amalgamados como um único ser de várias faces. Ao contrário das figuras de suas esculturas – sempre em gestos angulosos e crispados –, os seres dessas gravuras arranjam-se e rearranjam-se em linhas de (baixa) tensão, sinuosas e ondulantes. Esses seres compõem conjuntos de uma beleza serena quase inverossímeis para nossos olhos cínicos (pós)modernos.

Algumas das gravuras se organizam em torno de figuras circulares (“Cabelos e cavalos desenhando um círculo”, por exemplo) ou têm círculos como formas determinantes em sua composição. Na tradição simbólica de diversos povos, o círculo está associado às idéias de perfeição, ausência de limites, eternidade e valores imateriais. Tendo isto em mente, podemos entender como essa série de gravuras fazem um contraponto coerente com a obra escultórica anterior de Amadasi, a qual associa o enquadramento do indivíduo nas conformações ortogonais do sistema, com seus ângulos obtusos.

Situações coletivas populares revelam uma redescoberta da felicidade não-egoísta (nas gravuras “Um dia de farofa na praia” e “Somos o que somos juntos”, por exemplo). O sol é um fenômeno moral, humanizado (em “Foi num dia de sol e muitos pássaros”). Os pássaros, os balões e as pipas, emblemas da liberdade. Em “Aula de matemática na vila”, as formas ortogonais e angulosas
retornam, re-significadas: não representam mais os enquadramentos do sistema – “cúbica existência/ aspirando ao círculo” (nos versos de Dalila Teles Veras) –, mas os condicionamentos dos conjuntos e sub-conjuntos sociais numa racionalidade sensível que permeia a projetada vida coletiva plena. A vontade de liberdade teria, então, sobrepujado a luta pela satisfação das
necessidades naturais. A matemática sensível estaria, já, a serviço da superação generosa da racionalidade administrativa capitalista.

A transição para esse novo mundo – um país de são saruê: “O lugar melhor que neste mundo se vê”, nos versos de Manoel Camilo dos Santos – é representada nas imagens de passagem de gravuras como “Nós queremos mais”, “Travessia – a viagem” e “O portal dos sonhos”. Nesse novo mundo, tudo é transitável; não há espaços interiores, fechados. Mesmo onde há paredes e janelas, os diferentes planos transpassam-se e fundem-se.

Haverá lugar para a arte num mundo assim? Teremos fome de quê? Que realidade ainda haverá para transfigurar? Num mundo disciplinado pelo livre compromisso mútuo, terá alguma função a indisciplina da arte? Essas gravuras de Ricardo Amadasi parecem sugerir que, mesmo num mundo não avaro, generoso e solidário, os seres humanos quererão mais, terão fome e sede
espiritual, desejarão o inútil e caberá aos artistas manterem vivo o apreço pela luz e pelas pipas.

Julio Mendonça